segunda-feira, 21 de março de 2011

OLHARES Sobre o Roteiro

Um bom roteiro não se resume apenas a ter uma boa idéia ou a colocá-la no papel. Ao longo desse processo, o que conta não é somente a capacidade de escrever, mas também de perceber o tipo de história que se quer contar.

Para a oficina que inicia sábado, dia 2 de abril, Vicente Moreno pretende explorar e aprofundar os fundamentos do roteiro cinematográfico, buscando uma maior compreensão sobre sua escritura e possibilidades de estrutura. Conflito, ação, personagem, temporalidade, focalização são apenas alguns dos elementos que serão abordados em aula. Mas a máxima do curso, segundo Vicente, é a formação do olhar através do acesso a diferentes aspectos do pensar e fazer cinema.

Vicente Moreno tem formação em Realização Audiovisual pela Unisinos, onde é professor do módulo de montagem e roteiro no curso de Especialização em Cinema. Atua no mercado audiovisual desde 2006 como roteirista, montador e diretor, realizando programas para televisão, curtas, médias e longas-metragens. É diretor dos curtas-metragens "Sem Sinal" (vencedor do prêmio Histórias Curtas 2009) e "Mãos Dadas”, ambos premiados com melhor direção. Entre os longas-metragens, os mais conhecidos são “Ainda Orangotangos” (2007), como assistente de direção; “A Última Estrada Para Praia” (2010), como co-roteirista e assistente de direção; e "ABSOLUTO - Internacional Bicampeão da América", como diretor.

Vicente Moreno é autor do texto 'O Olho Que Tudo Vê', publicado no blog.

CINEMA EXPERIMENTAL

“Viver efetivamente é viver com a informação adequada”, já dizia Norbert Wiener. Na era da tecnologia da informação, onde somos orientados a armazenar o máximo possível de dados, ao invés de vivenciá-los, refletir e construir conhecimentos, a arte experimental pode ser vista como uma resistência favorável para a ação do agir para mudar.

Mais fácil de elucidar isso, é retroceder o olhar sobre, por exemplo, a vanguarda russa cinematográfica da década de 20, quando Eisenstein e Vertov produziam audaciosos experimentos fílmicos. Sem suas descobertas, o cinema tal como conhecemos hoje, não existiria. E, sobre esse ponto de partida, cabe um olhar pausado sobre o que chamamos de cinema normal e experimental, ou de vanguarda, nos dias de hoje. Se este é o que contribuiu para a existência do outro, porque nos parece mais palpável o normal ao experimental?

Anos de dominação política, econômica e publicitária explicam bem isso. A transformação da arte em produto de consumo em grande escala, ou a negação do valor da arte como produto autônomo, é uma via perigosa de mão dupla, cativa do pensamento conservador que soterra a contribuição, ou mesmo a existência das vanguardas, sobre o efeito visual do ‘novo’ modelo, onde não há modelo, pois tudo é arte. Soltas as cordas de sustentação da ponte, a travessia torna-se flutuante. Ou, sob o novo aspecto, desnecessária. Para que refletir, se tudo é arte?

No entanto, o mesmo pensamento que projeta o esvaziamento do fazer pensar, tem necessidade de controle, de enquadrar, nomear, denominar. Assim, é comum e cômodo identificar o objeto pela negação, em contraposição ao já estabelecido, ao tradicional, ao clássico. A arte perde sua autonomia e passa a existir pelo que ela não é.

Nada contra a negação, pois ela é o primeiro sintona de interação, de que algo foi sensibilizado. Saber o que é, será o próximo passo. Contudo, se vazia de conteúdo, a inquietação pode ser apenas indigesta. Nada que um sorrisal não cure e faça esquecer, tais quais as Bienais brasileiras.

A tecnologia anda mais rápido que o conteúdo, que é raso, repetitivo e não conversa com o cotidiano do telespectador. Este foi um dos comentários de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (o Boni), um dos pais da televisão brasileira, em entrevista à Marilha Gabriela, no programa Roda Viva.     

Refletir é tão essencial para a sobrevivência da espécie humana que apenas a má-fé ou a alienação podem pretender ignorar. É preciso urgente recuperar a capacidade de questionar e dar vazão as inquietações. E, nesse aspecto, a arte de vanguarda é prodigiosa em sua história, feita por artistas que tem a coragem de alargar a experiência humana. Suas obras são convites à resistência e à celebração.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Arthur de Faria viene a la Argentina para Músicas del Sur II

El sorprendente músico brasileño Arthur de Faria llega a la Argentina para presentarse en el marco del ciclo Miradas al Sur II, que reúne entre el 10 y el 20 de marzo en Buenos Aires a una muy interesante camada de músicos argentinos, brasileños y uruguayos.

Organizado por el Centro Cultural San Martín, el ciclo se desarrollará a lo largo de diez jornadas, con shows todos los días con entrada libre y gratuita en el Teatro 25 de Mayo (Triunvirato 4444) con un programación que incluye, entre otros, a los argentinos Rudi y Niní Flores, El Arranque, Dolores Solá y el quinteto de Diego Schissi; los uruguayos Martín Buscaglia, Leo Maslíah y Samantha Navarro y los brasileños Na Ozzetti, Marcela Pretto y Cida Moreira.

El encuentro, realizado por segundo año consecutivo, es un intento por trazar algunas coordenadas musicales sobre un conjunto de intérpretes y creadores pertenecientes a un universo cultural y geográfico común y al mismo tiempo diverso, en el que se marcan tanto afinidades como distancias.

Nacido en Porto Alegre hace 42 años, De Faria es productor, arreglador, compositor e intérprete y sostiene al mismo tiempo diversos proyectos musicales, tanto bajo formas camarístico-orquestales con base de rock, como musicalizando obras teatrales, programas televisivos o películas o haciendo arreglos para orquestas de cuerdas, además de hallarse abocado a la reconstrucción de 250 años de música en Porto Alegre.

Refiriéndose a este encuentro musical y hablando sobre las particularidades de Porto Alegre en relación con el resto del Brasil, De Faría señala que a diferencia de su ciudad "Brasil siempre estuvo de espaldas a América Latina" en términos culturales y musicales.

"En Rio Grando do Sul y en Porto Alegre es distinto, porque nosotros quedamos ubicados entre San Pablo y Buenos Aires y tenemos una cercanía cultural muy fuerte con Argentina y Uruguay, pero esta es una mirada que no es común con el resto del Brasil", dice De Faria en charla con Télam antes de llegar al país.

Para situarlo en términos concretos, De Faria dice: "Mi abuelo siempre escuchó tango, al igual que toda la gente de Porto Alegre y Borges fue el escritor que más leí; por estas cuestiones culturales, quizás me siento más en casa en Buenos Aires que en Rio de Janeiro o San Salvador y también por esto mis amigos de Sao Paulo me llaman medioargentino".

"Para los del Sur -señala- las fronteras son artificiales, el chamamé es una música que se toca mucho en Rio Grande, es una patria común, así como la milonga o las músicas folclóricas, para nosotros empieza a solidificarse esa cultura común del Plata."

 "Si hubiera que pensar estas cuestiones en términos de secesión, creo que Porto Alegre, Uruguay y Argentina podríamos fundar los Estados Libres del Plata, con capital en Montevideo", dice De Faria riéndose y jugando con la historia para graficar una afinidad cultural que se extiende hasta el sur del Brasil.

De hecho el pianista y compositor gaúcho con su banda musical (Arthur de Faria e Seu Conjunto) acaba de editar "Música para escuchar sentado", un disco armado sobre la base del tango y que en extrañas mezclas de logradísimos sentidos, une la milonga, el bolero, la marchina, la salsa, el chamamé, el funk, el rock y el punk.

De Faria, que se declara fanático de Astor Piazzolla, al punto de tener 66 discos de él y de haber leído todas sus biografías, dice que "está claro que no se puede hacer nada en el tango partiendo de Astor, como no se puede hacer nada en la música brasileña partiendo de Jobim".

"Hay que buscar -aclara- desde donde ellos empezaron, pesquisar qué sonoridades buscaban ellos, intentar partir de ahí para empezar a desarrollar y no partir desde ellos porque desde allí nos hay destino a no ser una mala copia de lo que ellos crearon que es una falsa ilusión de novedad".

De Faria agrega: "yo soy un tipo nacido en la ciudad, nunca voy a hacer una milonga como si fuera un tipo tierra adentro o un tango como un porteño pero el tango es parte de mi identidad cultural así como otras cosas con las que yo lo mixturo".

Para presentarse en Buenos Aires (actúa el sábado 12 a las 21), De Faria llega en formato de Dúo, junto al baterista y pianista Fernando Pezao, con quien conforma el Duo Deno.

"En este proyecto, y ese es su sentido, toco todo lo contrario a lo que hago con mi orquesta; con Fernando somos como una pequeña orquestita de circo que se fue quedando con pocos músicos y poca plata y donde tenemos que arreglarnos y hacer la sonoridad con las pocas cxosas que tenemos: yo con el piano, el acordeón y algunos juguetes, y Fernando con percusión, piano y piano de juguete", cuenta.

"Es una propuesta que tiene mucho de teatral y que se mueve bajo la premisa de intentar hacer lo más que se puede con lo mínimo", afirma.

Con esta formación, De Faria y Pezao van a tocar un repertorio con muchas recreaciones de canciones de Lou Reed, Fito Páez, Los Beatles, entre otros.

Imagens extraidas das redes sociais inspiram Flavya Mutran

“Pretérito Imperfeito de Territórios Móveis” é a exposição de Flavya Mutran que traz imagens de retratos fotográficos extraídos do universo dos álbuns de redes sociais e abre no dia 19 de março (sábado), das 11h às 13h, na Galeria Xico Stockinger da Casa de Cultura Mario Quintana (Andradas, 736, 6º andar). A visitação segue até 17 de abril, de terças a sextas-feiras, das 9h às 21h e sábados e domingos, das 12h às 21h. O lançamento do catálogo será realizado  no dia 16 de abril, das 11h às 13h, com a presença da artista.

Flavya Mutran busca diferentes maneiras de explorar fotograficamente o rosto, por meio da experimentação poética de retratos virtuais extraídos da Internet. “Os rostos que se apresentam nesse ambiente são móveis e multifacetados, são fragmentos visuais de territórios móveis, de passado incerto, presente inconcluso e de futuro fragmentado em pixels”, afirma. Natural de Belém do Pará, a artista conclui mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes Visuais da UFGRS. Seu trabalho ganhou o XI Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia em 2010. Mais sobre Flavya http://flavyamutran.wordpress.com/

quarta-feira, 9 de março de 2011

All you need are eyes

Hyde Tube é um banco de dados internacional que permite ver centenas de filmes curtos feitos para comerciais, vídeoclip e animação. Em 2009, eles organizaram seu primeiro festival.

Assista a abertura dedicada ao jurí.


The Hyde Tube Festival from Etapes on Vimeo.
More about: http://www.thehydetube.com/

terça-feira, 8 de março de 2011

Horas de Verão, de Olivier Assayas

 Isabel Ferlini

O filme “Horas de Verão”, de Olivier Assayas, sucesso na programação da 32ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, chega às locadoras de Porto Alegre.

Escrito e dirigido por Olivier Assayas, "Horas de Verão" questiona o valor da herança material e emocional, para as gerações seguintes. Com a morte da mãe, três irmãos vêem-se envolvidos com a herança de uma coleção excepcional de arte do século XIX, preservada  na casa de campo, onde passavam suas horas de verão.

Entre os diversos encontros que se sucedem, os irmãos Adrienne (Juliette Binoche), uma designer que mora em Nova York, Frédéric (Charles Berling) economista e professor universitário em Paris, e Jérémie (Jérémie Renier), um empresário dinâmico que vive na China, passam a confrontar o final da infância, as memórias partilhadas, a visão sobre passado e futuro, descobrindo que não têm mais tantas afinidades assim. A vida e os relacionamentos, tal com as obras de arte, se transformam com o passar do tempo.

A história em torno desses personagens parece simples. Os dramas pessoais são revelados aos poucos nos diálogos. Da mesma forma, trazem a presença da casa e do tio falecido. Cada pintura, artefato, móvel art décor e canto da casa contam uma história, revelam segredos, fazendo dela um personagem à parte, numa região coberta de vegetação e lirismo.

Sobre a situação sócioeconômica, "Horas de Verão" pode ser visto como um lamento do diretor pelo descaso à memória cultural francesa. No filme, os personagens principais são a nova geração de uma família que descende da aristocracia francesa e estão na posse de alguns artefatos inestimáveis de importância nacional, mas de alguma forma a ideia de dividir os pertences é tão universal. O nacionalismo parece navegar num processo de luto (arte e história) para a globalização, que nunca está satisfeita - e que existe com magra qualidade do material, apesar do denso e longo alcance do espaço que ocupa.

Filho do roteirista Jacques Rémy (1910-1981), Assayas começou no cinema como crítico da revista “Cahiers du Cinema”, em 1979, quando ainda era estudante. Em 1985 assinou o roteiro de “Rendez–Vous”, de André Techiné, exibido na 10ª Mostra Internacional de São Paulo. No ano seguinte, dirigiu “Désordre”, seu primeiro longa. Seus demais trabalhos são conhecidos pelo público paulista graças à Mostra. Com exceção de “Clean”, de 2004, com o qual ele concorreu em vão à Palma de Ouro em Cannes.

Para Assayas a revista “Cahiers du Cinema” foi uma escola, pois considera fazer cinema e pensar cinema uma mesma coisa, como duas etapas de um mesmo processo criativo. Não por acaso, tenta responder em seu cinema, questões que herdou como crítico. Com Horas de Verão, ele focaliza a atenção nas vidas internas secretas de mulheres, sem deixar de fazer perguntas duras que são universal a ambos os sexos: Onde está o lar? O que fazemos nós com as posses de gerações agonizantes? Lugares e objetos sustentam um tipo de vida emocional depois que os donos originais os abandonaram? Famílias podem ser sustentadas por gerações em um mundo onde ninguém fica mais no mesmo lugar por mais de alguns meses?




Onde encontrar: E o Vídeo Levou.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O Calor do Frio

Resenha Crítica do filme "Inverno da Alma"
Daniel Rodrigues*

Há um profundo amor quase impenetrável nos meandros de determinadas obras. Como na peça “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, de Plínio Marcos, no conto “Chacais e Árabes”, de Franz Kafka, ou filmes como “O Rito”, de Ingmar Bergman; obras duras. Tão intrincados de perscrutar que a própria manifestação afetiva, vencida por motivos indignos, parece nem existir. Mas ela está lá, mais viva que se possa sugerir à primeira vista. É o caso de “Inverno da Alma” (Winter's Bone, 2010), da diretora Debra Granik, cujo enredo evoca sentimentos motivadores genuínos, mesmo que encobertos de rancores, medos e inseguranças próprios do ser humano.

Premiado em Sundance e Berlim, o filme conta a história de Ree Dolly (Jennifer Lawrence, indicada ao Oscar de Melhor Atriz), uma jovem de 17 anos cuja imensa responsabilidade de gerenciar com parcos recursos uma casa com dois irmãos pequenos e uma mãe mentalmente doente é ainda mais dificultada quando ela se vê necessitada a encontrar seu desaparecido pai, Jessup Dolly, depois que ele usa a mesma casa como forma de garantir sua liberdade condicional. Diante da possibilidade de perder o teto, Ree desafia os códigos e a lei do silêncio do inóspito e gélido vilarejo onde moram arriscando a vida para salvar sua família. Os receios e as autoproteções dos que, de alguma forma, estiveram envolvidos com seu criminoso pai, então, começam a se manifestar na forma de mentiras, fugas e agressividade.

Ree aborda várias pessoas na tentativa de encontrar Jessup. Mesmo assim, o fato de seu pai ter dívidas com muita gente parece tornar as barreiras para a verdade intransponíveis. Mas só parece. Um dos elementos utilizados pela diretora para narrar a história com sua lente segura e rigorosa são as diversas portas daquelas simples casas, ao mesmo tempo protetoras dos frios do inverno e da alma. A cada abordagem atrás de ajuda, a protagonista lança-se numa busca onde é preciso transpor as “portas” daquele “íntimo coletivo” magoado e culpado – e, por isso, instintivamente hostil.

Na primeira metade do filme, por mais que pudesse adentrar em algum lar, a tentativa é sempre nula, como se a esperança de chegar a seu único objetivo (encontrar o pai vivo ou morto) fosse imediatamente negada. Passagens que se fechavam. No entanto, o elemento simbólico dessa busca mantém-se na persistência da personagem, e é então que as atitudes passam a gerar consequências, e as soluções, de forma amarga e realista, aparecem. Seu próprio tio, Teardrop (o ótimo John Hawkes, concorrente ao Oscar de ator coadjuvante), irmão de Jessup (e tão “durão” quanto o consanguíneo), que de início lhe negara apoio, tentando com brutalidade demovê-la da empreitada, é quem, depois, convencido a ajudar a sobrinha, busca-lhe na casa dos inimigos com a verdadeira intenção de, a partir dali, protegê-la.

Impossível não referenciar ao cinema iraniano, como aos cineastas Abbas Kiarostami ou Mohsen Makhmalbaf, cujas obras são marcadas pelos elementos representativos da busca por alguma coisa que, material ou não, direcionam o olhar do espectador a encontrar junto com os protagonistas aquele algo que existencialmente lhes faz falta. E, de fato, é o que procuram. Os road movies “Vida e Nada Mais” (1992) e “Gosto de Cereja” (1999), de Kiarostami, ou “Um Instante de Inocência” (1996), de Makhmalbaf, vão bastante nesta linha.

A fotografia entre o azulado e o acinzentado de “Inverno da Alma”, ressaltando a seca floresta de altos e opressores pinheiros, imprime uma sensação de solidão e mistério, pontuado por uma câmera quase que invariavelmente estática e uma trilha sonora econômica, usada para marcar momentos-chave da trama. Um pouco como “Fargo”, dos irmãos Coen (1996), inocência e subversão convivem num microuniverso à parte de tudo, escancarando um ser norte-americano interiorano longe dos belos tipos de Nova York ou Los Angeles comercialmente vendáveis ao mundo. Aqui, não: são gentes pobres e feias, enrugadas, de peles e cabelos maltratados, vestidas de jeans surrados e sem nenhum sinal de sensualidade (chega a ser estranho ver um filme americano onde nada é erotizado...).

É neste pequeno mundo que, impulsionada por um desejo convicto, Ree enfrenta com coragem suas manifestas limitações: a solidão da liderança, a angústia diária da vida pobre, os medos interiores, a fragilidade física de menina num ambiente bruto. Isso, motivada pela autoproteção e pelo amor sincero – mesmo sem sorrisos – aos que lhe dependem. Ela transforma, assim, aquela realidade aparentemente congelada pelo frio dos corações. Jessup, segundo o irmão, não tivera essa força interna para conseguir desviar-se da contravenção e viver em paz com os filhos que tanto amava. Essa ternura descomplicada de Ree se estende não só aos irmãos e a mãe, mas à sombria figura do pai, a quem a investigação acaba por abrir espaço a um novo e inesperado motivo, identificando-o tanto na figura do tio (durão, mas, no fundo, um “coração mole”) quanto no significado que a própria busca em si lhe representa: um encontro consigo mesma. Tal pai, tal filha.

Há uma cena em que Ree folheia com os irmãos um álbum de fotografias onde reveem fotos da família. Numa delas, está o pai, jovem e feliz ao sol. Segundo Ree, quando tinha sua idade. Essa identificação parece, aos poucos e inconscientemente, funcionar como libertadora da jovem quanto às pré-concepções de sua origem nefasta, tão alardeadas e imputadas por todos como sendo inatas dos Dolly.

Curiosamente, a forma como a Ree prova a morte do pai para, enfim, poder ficar com a casa, é levando ao delegado as mãos do morto, cortadas por uma motosserra. E por serem justamente as mãos, o aspecto do inatismo reaparece como metáfora, lembrando a dicotomia levantada por um dos clássicos do cinema expressionista alemão, “As Mãos de Orlac – O Calvário de Um Artista”, de Robert Wiene (1924) – mesmo diretor do essencial “O Gabinete do dr. Caligari”. No filme, o pianista Paul Orlac sofre um acidente de trem onde perde as mãos. Na cirurgia de emergência, transplantam-lhe as mãos do assassino Vasseur, que acabara de ser executado. Ao saber disso, o sensível músico entra em um grande conflito interno que o leva à loucura: passa a, igualmente ao “dono” das mãos, matar com elas. As mãos de Orlac assumem o caráter de um símbolo: instrumentos da vontade que comanda o fazer, pelo qual o homem revela sua humanidade ou desumanidade, elas são um signo material do sujeito, tanto como objeto da expressão dos sentimentos quanto demonstração objetiva da personalidade.

Não à toa, é com um pequeno toque no ombro do seu tio que Ree, mesmo temerosa, demonstra-lhe empatia, firmando ali o elo emocional entre os dois. Ao tomar consciência da própria personalidade, as coisas começam a tomar rumos que, de uma forma ou outra, acabam se encaixando. Pela iniciativa de alguém para mudar o cenário, os corações, agora timidamente sorridentes, parecem motivar-se a se aquecer. Vida e nada mais.

Sobre a diretora

A americana Debra Granik, nascida em Cambridge, Massachusetts, tem uma curta e já premiada carreira. Formada em cinema pela Tisch School of the Arts (New York University), fora as já citadas premiações e indicações de “Inverno da Alma” (além da principal indicação ao Oscar, a de Melhor Filme), Debra ganhou, na sua estreia atrás das câmeras o prêmio de Melhor Curta-Metragem para seu “Snake Feed” no Sundance Film Festival de 1998. Ligada ao cinema independente, “Inverno da Alma” é recém seu segundo longa. Seu primeiro, “Down to the Bone”, de 2004, sobre uma mulher presa em um casamento que luta para criar seus filhos e controlar o hábito secreto de se drogar, deu a ela o prêmio de Melhor Diretora de Filme Dramático também em Sundance.

A considerar seus dois longas, percebe-se um olhar bastante humanístico e sensível sobre questões muitas vezes obscuras da sociedade norte-americana, como os vícios, as desarticulações familiares da vida moderna e as pressões psicológicas impostas pela por esta sociedade. Longe da exuberãncia fotográfica e mais próxima das composições plásticas precisas, o estilo de Debra, anteriormente formada em Política, vale-se desta visão mais ampla para direcionar suas lentes a questões socioeconômicas que operam do externo para o interno, motivando, a partir daí, a consequências mais profundas e íntimas dos personagens.

*Jornalista, apoiador do Ciclo.

domingo, 6 de março de 2011

O Poderoso Chefão e o pensar cinematográfico

Isabel Ferlini

Às vésperas de completar 40 anos da produção do primeiro filme da trilogia Poderoso Chefão , o ‘Ciclo Olhares Por dentro da trama’ reascende o debate sobre a obra de maior influência na carreira de Francis Ford Coppola (até então, um desconhecido diretor) e, por que não dizer, na história do cinema a partir de 1972.

Sob a supervisão da Paramount Pictures, a audaciosa produção de Coppola é uma adaptação do romance de Mario Puzo (1920-99). Siciliano radicado em Nova York, num bairro pobre e violento de Manhattan e jogador inveterado, quando anunciou a decisão de escrever, Puzo foi tomado como insano. Teve alguns fracassos percorridos, mas desde a obra ‘The Godfather’ (1969) sobre a saga da família Corleone, tornou-se sumidade literária. Muitos de seus livros descrevem a herança siciliana.

Ambientado nas décadas de 40 e 50, o primeiro filme ‘The Godfather’ se tornou um épico, recheado de momentos inesquecíveis do cinema. Cenas como o tiroteio na barraca de frutas, o assassinato no restaurante, Don Vito no canteiro de tomates, toda a sequência de Michael na Sicília e muitas outras, então vivas na memória dos cinéfilos mesmo quase 40 anos depois de seu lançamento.

O filme conta a primeira parte da saga da famiglia Corleone. Comandada pelo respeitado Don Vito Corleone (Marlon Brando), a família mafiosa controla os negócios ilegais na Nova York dos anos 40 e 50, em constantes conflitos com outras famílias e dons. Don Vito tem nos filhos Sonny (James Caan), Fredo (John Cazale), Connie (Talia Shire) e Michael (Al Pacino) e na honra da família suas maiores motivações. A maneira como gerencia os negócios (bussinesse, no melhor inglês com sotaque italiano) com o auxílio dos capos (generais da máfia) e de seu consigliere (Rubert Duvall) é mostrada em detalhes que beiram a perfeição.

Entretanto, a gerência dos negócios pelos mafiosos não se resume apenas a contas e pagamentos. Assassinatos são parte constante desse dia-a-dia. O problema é que Coppola não gosta de violência.  Ele descobriu então uma maneira muito interessante de lidar com os aspectos mais pesados da máfia. O diretor passou a agregar elementos sutis que distraem a audiência (e talvez ele mesmo) da barbárie das cenas mais fortes. Coisas como laranjas rolando no asfalto durante um tiroteio, um pé saindo pelos pára-brisas durante um estrangulamento, formas bizarras de assassinatos, a desobediência aos princípios dos assassinatos e muitas outras, foram incorporadas para dar mais textura à violência. O resultado de tanto esforço foi um filme grandioso, ricamente ilustrado em todos os sentidos.

É por causa dessa riqueza de sentidos que escolhemos o filme para o CICLO. A  bela arquitetura de filmes como O Poderoso Chefão nos permite tanto revisitar suas características clássicas, quanto contrapô-las. E isso é muito importante para o nosso trabalho, no momento em que nos propormos em refletir sobre o fazer e pensar cinematográfico, suas teorias, técnicas, práticas versos a sensibilidade do olhar. Essa sensibilidade que nos permite compreender melhor arte e mundo.

sábado, 5 de março de 2011

O Passo Flutuante do Trem
















O filme em 35 m/m mais antigo do mundo; rodado em San Francisco USA a partir de uma câmera montada na frente de um bonde em 1906 , poucos meses antes do grande terremoto que destruiu virtualmente toda a cidade! O fascinante neste vídeo é que não sabemos nenhum detalhe sobre esta metragem - só que é bonito de assistir.
fonte: http://wn.com/1906_Air_La_Femme_D%27Argent 

Já, a trilha sonora é da dupla francesa 'Air'. "La Femme..." é a música de abertura do disco 'Moon Safari', que marcou a estréia da dupla em 1998. O disco foi super bem recebido pela crítica e hoje já é um "clássico moderno" junto com o 'Odelay do Beck' (1996) e o 'Big Calm', do 'Morcheeba' (1998). O 'Moon Safari' consta na lista daquele livro "1001 Discos Para Ouvir Antes de Morrer", por exemplo. Uma coisa interessante é que "La Famme...", não só por anteceder o hit do disco, 'Sexy Boy', segunda faixa do CD, causando um proposital impacto ao passar de um clima instrumental longo (algo bastante anticomercial) e jazzístico para um tema bem mais dançannte, ainda dá o tom do que a banda se propõe conceitualmente. Esse ecletismo sonoro, casando coisas modernas e retrô faz com que não se enquadrem em nenhum estilo musical pré-definido.

Estilísticamente, pode-se dizer que a música tem inspiração no cool jazz e no jazz fusion com umas pitadas de soul americano dos anos 70, como os "grooves ambientais" do Marvin Gaye e do Isaac Hayes (essa coisa meio "chapada" de notas que parecem flutuar).


O nome da banda é a sigla de Amour, Imagination, Rêve, que significa Amor, Imaginação e Sonho. O Air costuma fazer parte das bandas sonoras dos filmes de Sofia Coppola.  
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Para aqueles que se aventuram no audiovisual, lançamos o desafio. Envie um vídeo experimental de sua autoria, com duração de até cinco minutos, até 30 de março. Melhor vídeo - Valendo 1 vaga na primeira oficina do Ciclo. Email de contato: isabelferlini@curtaocircuito.art.br Escrever no assunto ‘DESAFIO OLHARES’. 

quarta-feira, 2 de março de 2011

O OLHO QUE TUDO VÊ

A realidade subjetiva em O Escafandro e a Borboleta.
Vicente Moreno*

Artista plástico neo-expressionista, Julian Schnabel surgiu para o cinema em 1996 com Basquiat. De lá para cá, lançou apenas mais dois títulos:  Antes do Anoitecer (Before Night Fall, 2000) e agora O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre ET Le Papillon, 2007). Com tão poucos filmes, saltam aos olhos as recorrências: além de todos serem adaptados de alguma obra literária, todos trazem como tema a liberdade, explorada através da investigação da criação artística. Seus protagonistas são sempre artistas reais que produziram em condições adversas, artistas marginais de alguma forma. Foi assim com o pintor das ruas Jean Michel Basquiat em Basquiat, com o escritor cubano perseguido e exilado Reinaldo Arenas em Antes do Anoitecer, e dessa vez com Jean-Dominique Bauby em O Escafandro e a Borboleta.

Bauby era o editor-chefe da revista francesa de moda ELLE antes de sofrer um acidente cardiovascular e acabar paralisado em uma cama de hospital até a sua morte.Vítima da chamada síndrome do encarceramento (lockedin syndrome), Bauby, apesar de perfeitamente consciente, acaba aprisionado dentro do próprio corpo, tendo como único movimento possível o piscar de um dos olhos. Ainda assim, graças a um sistema empregado por sua ortofonista, ele consegue levar adiante um contrato de livro que tinha com uma editora. Sinalizando letra por letra através de piscadas, Bauby encontra na escrita e na imaginação a saída de seu escafandro. É esse livro-testamento, o único que Bauby irá escrever antes de morrer, que serviu de material para Schnabel fazer certamente o seu melhor filme até agora.

O Escafandro e a Borboleta demonstra uma clara evolução em relação aos seus filmes anteriores. Nele, Schnabel vai muito além dos clichês das histórias de superação, alcançando com rara poesia questões fundamentais sobre os limites entre consciência e realidade, entre arte, representação, vida e morte – questões estas em perfeita sintonia com as escolhas formais pelo uso extensivo e atípico da câmera subjetiva e das recorrentes inserções de imagens de arquivo. Isso demonstra o amadurecimento estético do diretor e afasta definitivamente qualquer possibilidade de considerá-lo um estrangeiro das artes plásticas infiltrado no meio cinematográfico.

A claustrofobia do olhar

Sendo o livro de Bauby autobiográfico, é natural que o filme privilegia a sua perspectiva. No entanto, a busca pelo ponto de vista do protagonista não fica restrita ao emprego da voz-over e do monólogo interior; ela é radicalizada oticamente, mercando-se enquanto recurso de linguagem.  Como que encarcerados no escafandro de Bauby, durante os primeiros 38 minutos só acompanhamos o que acontece no hospital através de uma câmera subjetiva instável, que reproduz as condições debilitadas do personagem.

Se um dos grandes fascínios e trunfos do cinema é justamente a possibilidade de contrapor múltiplos pontos de vista, o que acontece quando essa possibilidade é propositada e radicalmente negada? A primeira e mais rápida suposição seria o surgimento do incômodo.  No entanto, tal incômodo não poderia estar mais justificado, pois, de forma rápida e intensa, fica expressa a aflição claustrofóbica da imobilidade e da impotência de Bauby. Assim, mesmo com um protagonista de ações restritas e um olhar igualmente restrito, o processo de identificação e envolvimento como universo ficcional não fica de forma alguma ameaçado, mas, ao contrário, ganha força.

Alguns poderiam lembrar que a utilização radical da câmera subjetiva não é novidade, já que, em 1947, mesmo dentro de Hollywood, o ator-diretor Robert Montgomery já havia feito um longa-metragem interior (A Dama do Lago, Lady in the Lake) restringindo-se ao mesmo procedimento – feito este que seria para sempre citado por críticos e estudiosos como ingênuo e mal-sucedido. Fica a pergunta: o que diferencia a câmera de Montgomery da câmera de Schnabel, que faz da primeira um exemplo de experiência fracassada e da segunda uma grande demonstração de criatividade? Como diferencial, encontramos nas subjetivas de Escafandro ...  alguns elementos técnicos bastante originais, que, combinando fotografia e montagem, enriquecem em muito esse recurso já comum.

Para levar a câmera subjetiva a outro nível, o fotógrafo Janus Kaminski (parceiro de Spielberg em mais de 10 filmes) trabalha não só com a reprodução dos movimentos do personagem, mas também, e principalmente, com as distorções do olhar de alguém que acaba de despertar de um coma. Através de foques e desfoques, alterações na exposição e aparatos em frente à lente, a câmera, subjetiva reproduz as secreções do olho de Bauby – chora, pisca e se perde com ele. Como Bauby não podia mexer a cabeça, muitas vezes temos os seus interlocutores decepados, mal-enquadrados, o que valoriza a força do espaço fora de quadro e liberta os personagens em cena. Em todos os sentidos, as subjetivas de Escafandro ... servem como perfeito contraponto às de A Dama do Lago, pois neste último se percebe que a extrema preocupação em manter os quadros compostos e os movimentos estáveis acaba engessando a mise-em-scèn’, que é toda submissa ao posicionamento da câmera e, portanto, pobre e previsível.

Agora, mais decisiva do que a plasticidade orgânica dessa câmera subjetiva é a forma como a montadora Juliette Welfling a articulou. Ao imaginar a reprodução fiel do olhar de um personagem pela câmera, é fácil incorrer no mesmo erre de Montgomery e acreditar que todas as cenas devam ser – ou ao menos parecer – longos planos-sequência, pois o olhar humano e aparentemente contínuo. No entanto, como gosta de apontar Giba Assis Brasil, isso é um equívoco: ao movemos o nosso olhar de objeto em objeto não estamos fazendo panorâmicas, mas sim cortes, pois, apesar de enxergar os intervalos entre os pontos de atenção, não os consideramos. Talvez com isso em mente, Schnabel e Juliette optaram pela descontinuidade da câmera subjetiva, o que serviu não só para libertar e dinamizar a narrativa, mas também para reproduzir ainda mais as percepção do personagem.  Para tanto, a montadora trabalha com uma articulação essencialmente elíptica, tanto no interior das cenas como entre elas, abusando de jump cuts, de pontas pretas e da inserção de poucos frames desfocados entre plenos, reproduzindo pescadas humanas.

Todos esses detalhes técnicos apontam para uma mesma direção artística: em vez de tentar negar ou minimizar as evidentes limitações da câmera subjetiva, o caminho foi abraçá-las e explorá-las ao máximo enquanto tradução estética da subjetividade do personagem. Talvez a cena que leve mais longe essa fusão entre espectador e personagem, entre forma e conteúdo, é aquele em que, por falta de irrigação, um dos olhos de Bauby precisa ser fechado, costurado. A agonia de ver de dentro as pálpebras serem unidas por agulha e linha, ponto a ponto, fazem dessa imagem uma metáfora inesquecível da limitação do olhar. E é justamente nesse ponto, logo após a costura total das pálpebras até o preto, a primeira vez em que saímos da câmera subjetiva no hospital e vemos Bauby de fora, mas apenas em breve plano detalhe do seu olho suturado. Já é um indício de que o filme aponta para a busca, por parte do personagem e da câmera, de um olhar além desse olhar negado, de um olhar além do físico e concreto: o olhar da imaginação e da memória.

Essa libertação do olhar e suas escapadas da câmera subjetiva vão sendo construídas progressivamente em paralelo à evolução de Bauby. Ainda assim, nas poucas chances que temos de ver Bauby de um ponto de vista externo, seu rosto nós é repetidamente negado. Em uma cena ainda no início do filme, quando Bauby é levado para fora do quarto pela primeira vez, vemos um reflexo borrado do seu rosto ao passar por algumas vitrines no corredor do hospital. Nessa ocasião, o próprio Bauby questiona-se sobre seu reflexo monstruoso, ainda sem aceitar que sua condição de subsistência pode ser chamada de vida. Como em um conto moral, o seu texto só poderá tomar uma forma nítida quando ele vencer seu desejo de morrer e decidir reencontrar dentro de si algum sentido para ir adiante.

A culminância dessas duas linhas que correm em paralelo, a da aceitação de Bauby (conteúdo) e a da liberação da câmera subjetiva (forma), ocorre quando Bauby percebe que existe uma maneira de libertar-se: simplesmente imaginar-se livre. Em uma seqüência de justaposição de imagens de arquivo, que inicia com o desabrochar de uma borboleta, Bauby declara sua independência, imaginando mundos distantes, sonhos não-vividos, mas principalmente, imaginando a si próprio – primeiro de forma idealizada,  depois representado na figura de Marlon Brando, mas logo de forma mais honesta, através de uma série de retratos  de Mathieu Amalric, o ator que interpreta Bauby.

O primeiro plano após essa seqüência começa com o rosto de Bauby em sua cadeira, perfeitamente nítido, subindo em seguida para o rosto de sua ortofonista, que fala ao telefone com uma editora pra avisar que ele decidiu escrever um livro. Como uma etapa que se fecha,  o rosto paralisado de Bauby finalmente toma forma, marcando a sua mudança de atitude, o fiem do encarceramento da câmera subjetiva e o início do novo rumo que toma o filme.

O poder da criação e a subjetividade da realidade

Para além do artista, estendendo-se a qualquer indivíduo, o filme é uma apologia da liberdade da mente e do poder da criação. A borboleta do título é uma metáfora clara dessa liberdade. Além da relação óbvia com as ‘asas da imaginação’, é importante ressaltar que a borboleta remete também ao olho que pisca, o único contato de Bauby com o mundo exterior. O olho, o olhar, que antes era prisioneiro, agora pode ser visto como símbolo de liberdade graças à força da imaginação e ao poder transformador da consciência. É a exarcebação do poder do sujeito sobre os objetos.

No mergulho subjetivo que o filme propõe, confunde-se memória e imaginação, o que supostamente seria real e aquilo que não passa de fabricação da mente de Bauby. Há momentos em que a distinção é mais clara, como, por exemplo, no encontro com o pai e no acidente cardiovascular (memória) ou no jantar no ‘Le Duc’ e no beijo com a estátua viva (imaginação). Ainda assim, o que nos leva a tomar uma situação como mais real que a outra é a lógica realista ou não dos acontecimentos, sua verossimilhança; no entanto, se formos adiante na investigação, veremos que, em se tratando de subnarrativas, trazidas pela elaboração de um personagem, não há real distinção possível entre memória e imaginação, pois ambas são igualmente questionáveis.

Nas seqüências constituídas de imagens de arquivo, que seriam entendidas como imaginação, temos, por exemplo, elementos da memória, como os retratos das diferentes fases de Bauby (já descritos acima). Da mesma forma, mesmo dentro das cenas em que somos transportados clara e audiovisualmente para um momento da vida de Bauby no passado, encontramos pequenos lapsos de irrealidade – como na seqüência de Lourdes, em que Bauby sai à noite pelas ruas repletas de pessoas e, subitamente, se vê caminhando sozinho pelas mesmas ruas agora completamente vazias.

Essa mistura proposital entre realidade e fantasia lembra a citação retira do livro de Bauby que uso para epígrafe deste texto, citação esta que, apesar de não colocada literalmente no filme, está muito bem expressa na sua articulação. Acredito que a ideia da não-diferenciação entre sonho e realidade, evocada nesse caso por uma experiência extrema como a de Bauby, remete a nossa própria relação com o real. O contato com o mundo físico, com a suposta ‘coisa em si’, só ganha o status de ‘real’ graças à sua complexidade de estímulos. Podemos  ver, ouvir, tocar, cheirar e até provar um objeto. Os nossos sentidos nos abastecem com suficiente informação para que não nos questionemos muito sobre como esse mesmo objeto depende da nossa percepção.  Ao ter seus sentidos limitados, Bauby, como o espectador cinematográfico, fica restrito à visão e à audição, não tendo como se beliscar ou tocar em um objeto quando surge a dúvida se está vivendo um sonho ou a ‘realidade’.

Imóvel e impotente, Bauby é o indivíduo-observador quintessencial: um sujeito solitário diante de um mundo de objetos, onde tudo e todos (inclusive o próprio corpo) estão irremediavelmente submissos à sua percepção. Essa ideia da imaterialidade do mundo, a negação do concreto, pode ser assustadora em um primeiro momento, como o é para Bauby. No entanto, eventualmente ele percebe aquilo que talvez todos devêssemos perceber: se a realidade está submissa à nossa percepção, por que não usar da imaginação e da criatividade para tentar manipulá-la a nosso favor? Essa visão mais otimista em relação à subjetividade da realidade é talvez a grande premissa do filme, que acaba trazendo como exemplo de superação justamente a liberdade do mundo material – uma ode à imaginação e à criação.

Em um determinado momento da primeira parte do filme, antes da virada otimista, vemos uma seqüência de imagens de paredões de pedra sendo implodidos enquanto ouvimos Bauby lamentando sues fracassos e suas oportunidades perdidas. No final, quando Bauby morre pouco depois da publicação de seu livro, o otimismo e sua premissa ficam claramente sustentados na poética seqüência de créditos finais. Ao som de Ramshakle Day Parede, vemos os mesmos paredões agora em reverse, reconstruindo-se, recriando-se, escapando do pó e do caos. Uma metáfora óbvia, mas contundente. Bauby se vai; fica seu livro. Isso nos faz pensar que talvez a arte e a criação, a subjetividade expressa em linguagem, sejam a melhor forma, para não dizer a única, de escapar da morte.

*Cineasta, professor da Especialização em Cinema Unisinos. Ministrante do Ciclo Olhares Sobre o Cinema. 
Texto publicado na revista Teorema Crítica de Cinema, nº 13. Dezembro de 2008.
 
 
Julian Schnabel Filmes:
 * Basquiat (1996)
 * Before Night Falls (2000)
 * The Diving Bell and the Butterfly (2007)
 * Lou Reed's Berlin (2007)
 * Miral (2010)