terça-feira, 26 de abril de 2011

MOSTRA FESTIPOA LITERÁRIA - CINEMA, LITERATURA E HUMOR GRÁFICO

























quarta-feira, 20 de abril de 2011

É POSSÍVEL A ARTE MUDAR O MUNDO?

'Poesia', filme sul-coreano de Lee Chang-dong

É possível ensinar a escrever poesia? Aparentemente, sim. Num centro cultural numa cidade da Coréia do Sul, um grupo de pessoas senta-se em mesinhas escolares. Seus olhares são ávidos como de crianças no primário à espera de aprender as primeiras letras do alfabeto.

O professor, um poeta conceituado, mostra-lhes uma maçã e pergunta se alguém já viu a fruta. Claro, todos já viram, como ele mesmo diz, milhares de maçãs em suas vidas. "Vocês nunca viram uma maçã de verdade", decreta. Mas qual a diferença entre ver e enxergar?

Ao centro do drama sul-coreano "Poesia" está exatamente essa questão: o que vemos e o que enxergamos?  Mija (Jeong-hie Yun) é uma senhora que cuida do neto, e trabalha como faxineira e uma espécie de enfermeira de um homem que sofreu um derrame (Hira Kim). Ela é a última a se matricular na aula de poesia, e a aluna mais esforçada. Em seu caderninho, faz anotações quando frases e observações lhe ocorrem – não importa onde esteja.

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Luiz Carlos Merten *

Lee Chang-dong considera que foi decisivo o ano em que foi ministro da Cultura da Coreia. Ele não apenas se confrontou com a diversidade da produção cultural de seu país, como teve de atender a demandas, polemizar sobre o que estava sendo feito. Quando voltou à direção, sentiu-se inseguro como nunca na vida. Com medo de errar a mão, fez o filme mais simples que podia, e escreveu um roteiro tão detalhado que mais parecia um romance.  Secret Sunshine era sobre uma mulher que perdia o marido e, depois, o filho e buscava apoio na religião para a sua dor imensa. Chang-dong ganhou o prêmio de roteiro em Cannes, em 2010, pelo belíssimo Poetry (Poesia).

Outra mulher - uma avó - vela pelo neto suspeito de violar garotas. Ela sofre do Mal de Alzheimer e busca nas palavras, na poesia, uma forma de retardar o esquecimento, driblando sua morte em vida. Chang-dong encontrou-se com a reportagem do Estado no Festival de Cannes. Estava feliz com a recepção a seu filme - a entrevista foi feita antes da premiação. Por Secret Sunshine, ele já havia sido premiado em Cannes - melhor atriz. Se houvesse novo prêmio para ele, Chang-dong esperava que fosse de novo o de interpretação feminina.

Yoon Hee-jeong, que faz a avó de Poetry, tem mais de 300 filmes no currículo. É uma estrela vem seu país, mas há 15 anos ela não filmava. O que Chang-dong fez para convencê-la a voltar ao cinema? "Escrevi Poetry especialmente para ela, que ficou lisonjeada. Quando leu o roteiro, ficou fascinada, não apenas pela personagem, mas também pela precisão da escrita. Tudo estava ali previsto e detalhado. Gosto de fazer assim. É a forma como me sinto livre para mudar tudo no set. Mas as coisas não foram simples para Yoon. Quando ela filmava muito, a sincronização era diferente, feita na maioria das vezes a posteriori, em estúdio. Foi preciso que ela se adaptasse a um novo estilo de filmagem. Mas Yoon não é uma estrela. É muito humana, e foi um prazer para toda a equipe tê-la no set. Virou uma espécie de avó da equipe, preocupada com todos e com cada um."

Reflexões. A entrevista é feita com tradutor. Cada pergunta demora um tempão para ser formulada. As respostas demoram mais ainda. Chang-dong é reflexivo, olha nos olhos do entrevistador. Secret Sunshine olhava o mundo do ângulo das vítimas, Poetry talvez se construa do ângulo dos familiares dos carrascos. Ele diz que não pensou assim. "O que m e atrai é o ser humano. Carrascos ou vítimas, nós nunca somos só uma coisa. A natureza humana é complexa e, como artista, tenho a impressão de que minha função é iluminá-la. Filme para conhecer o outro e a mim mesmo."

O tema da doença é essencial em Poetry. O Mal de Alzheimer tem aparecido com frequência no cinema. O repórter insiste na definição de ‘morte em vida’. Chang-dong diz que a ligação da personagem com as palavras - poesia - faz parte de um movimento íntimo. "Dando novo sentido às palavras, ela busca preservá-las, e o que representam, do esquecimento." É filme belo e contemplativo. Serve à poesia e ao cinema. À poesia do cinema?

*Crítico de cinema.

terça-feira, 19 de abril de 2011

UM OLHAR A CADA DIA

por Adriano de Oliveira Pinto*

O homem evolui no período que separa os dois extremos de um mesmo século? Se a sua resposta é "sim", saiba que Theodoros Angelopoulos  pode achar nem óbvia, nem absoluta, tal asserção. Neste filme, o diretor heleno mostra, à sua moda, que a pureza da alma humana está ficando para trás e que a barbárie, se não cresce, muito menos se extingue ao longo do tempo.

A odisseia de um Ulisses moderno é recontada livremente por um Angelopoulos-Homero que, por meio de um protagonista sem nome - um cineasta grego (o americano Harvey Keitel) de volta à sua região natal -, apresenta seu desencanto na humanidade. O tempo da história narrada é o da época de sua realização, primeira metade da década de 1990, com a Guerra da Bósnia em andamento e lhe servindo parcialmente de cenário. O herói faz sua jornada pelos Bálcãs em busca de três rolos de filme não-revelados dos irmãos Manakis, pioneiros da fotografia e do registro cinematográfico cotidiano em terras argivas e nações arredores. Singrando ele não por águas marítimas jônicas, mas por territórios balcânicos em momento hostil, efetiva uma busca que vai além do objetivo material. Os rolos históricos dos Manakis são somente o McGuffin de uma viagem mais que meramente física, sobretudo lírica.

A procura pelos registros iniciais do século 20 em forma de filmes documentados por pioneiros transcende o mundo palpável. O que o personagem central quer é captar a essência do olhar do começo daqueles anos - uma visão de mundo certamente bem mais pura que a do final do mesmo período. Depois desses tempos de paz assinalados em fotogramas pelos irmãos documentaristas, a região enfrentou conflitos tempestuosos: as guerras Balcânica, Primeira e Segunda Mundiais e bem mais adiante, a da Bósnia. Em força disso, a inocência desaparecida se transforma no pote do final do arco-íris: um tesouro inalcançável. A entropia causada pelas ambição e "evolução" humanas irreversivelmente leva embora uma percepção mais doce, pacífica e pastoral do mundo, deixando no lugar desta uma malquerença crescente. A origem desse mal, na visão dos roteiristas (entre os quais o diretor e também o lendário Tonino Guerra, escritor das obras de Antonioni) está na política, no nacionalismo ufanista e na intolerância étnica que assolaram a região. Curiosa e paradoxalmente, o herói vai buscar paz espiritual numa região de conflito armado corrente.

Angelopoulos, com seu cinema contemplativo e de reflexão, define-se bem quanto ao seu modo de filmar. Fazendo uso de uma câmera fluida, por entre travellings, zooms e gruas, ele leva a cabo uma lenta (e necessária, dentro de seus propósitos) narrativa convencional pontuada de planos-sequência engenhosos. Um destaque àquele que introduz em cena o personagem de Keitel, esse Ulisses moderno do filme. Rodado à noite, com passagens variadas de locações e bom número de figurantes, assombra pela perfeição de sua execução e rara beleza. É talvez um dos mais espetaculares que o Cinema testemunhou. Cenas como as duas consecutivas que focalizam refugiados albaneses - ora estáticos (lembrando uma inesquecível cena de O Ano Passado em Marienbad de Resnais), ora em movimento a diferentes tempos -, aquela da jornada da estátua de Lenin (com sua colossal cabeça como a observar a derrocada de seu regime político) e outra que realiza uma variação sobre O Baile de Ettore Scola já carregariam intrinsecamente, cada qual delas, enorme significado dentro dos respectivos contextos apresentados. Mas Angelopoulos não se contenta apenas com isso: reveste essas mesmas passagens com uma poesia visual de tirar o fôlego.

Há tanto apuro imagético, principalmente na primeira metade do filme, que o roteiro parece se tornar secundário. Primeira impressão, pois forma e conteúdo aqui caminham de mãos dadas, infrequente cônjuge. Theo conhece igualmente o poder da sugestão, e exemplo disso é o uso de um conjunto mais-que-perfeito de contextura, imagem e som para realizar tal efeito, o que se dá na trágica cena da neblina em Sarajevo, quando o espectador é arremessado ao drama então vivenciado pelo protagonista, o qual tem de imaginar a ação onde não a pode ver.

Com uma fotografia esplêndida obtida mormente sob céus plúmbeos, trilha sonora gentil, atuações comoventes de Keitel e Maia Morgenstern (esta a representar todas as mulheres parceiras na tristeza do Novo Ulisses) e tantos outros predicados, esta obra de quase três horas de duração se afirma como uma das peças fundamentais do final do século passado, aquele conturbado período abraçado por quem retratou a procura por um olhar perdido, definitivamente perdido: um olhar tragado pelo caos.

Um Olhar a Cada Dia (To Vlemma tou Odyssea)
Direção: Theodoros Angelopoulos
Roteiro: Theodoros Angelopoulos e Tonino Guerra
Com: Harvey Keitel, Maia Morgenstern, Erland Josephson, Yorgos Michalakopoulos
País de produção: Grécia/França/Itália/República Federal da Iugoslávia/Reino Unido/Bósnia-Herzegovina/Albânia/Romênia/Alemanha
Ano de lançamento: 1995
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 176 minutos

*originalmente publicado no site da Accirs.