por Adriano de Oliveira Pinto*
O homem evolui no período que separa os dois extremos de um mesmo século? Se a sua resposta é "sim", saiba que Theodoros Angelopoulos pode achar nem óbvia, nem absoluta, tal asserção. Neste filme, o diretor heleno mostra, à sua moda, que a pureza da alma humana está ficando para trás e que a barbárie, se não cresce, muito menos se extingue ao longo do tempo.
A odisseia de um Ulisses moderno é recontada livremente por um Angelopoulos-Homero que, por meio de um protagonista sem nome - um cineasta grego (o americano Harvey Keitel) de volta à sua região natal -, apresenta seu desencanto na humanidade. O tempo da história narrada é o da época de sua realização, primeira metade da década de 1990, com a Guerra da Bósnia em andamento e lhe servindo parcialmente de cenário. O herói faz sua jornada pelos Bálcãs em busca de três rolos de filme não-revelados dos irmãos Manakis, pioneiros da fotografia e do registro cinematográfico cotidiano em terras argivas e nações arredores. Singrando ele não por águas marítimas jônicas, mas por territórios balcânicos em momento hostil, efetiva uma busca que vai além do objetivo material. Os rolos históricos dos Manakis são somente o McGuffin de uma viagem mais que meramente física, sobretudo lírica.
A procura pelos registros iniciais do século 20 em forma de filmes documentados por pioneiros transcende o mundo palpável. O que o personagem central quer é captar a essência do olhar do começo daqueles anos - uma visão de mundo certamente bem mais pura que a do final do mesmo período. Depois desses tempos de paz assinalados em fotogramas pelos irmãos documentaristas, a região enfrentou conflitos tempestuosos: as guerras Balcânica, Primeira e Segunda Mundiais e bem mais adiante, a da Bósnia. Em força disso, a inocência desaparecida se transforma no pote do final do arco-íris: um tesouro inalcançável. A entropia causada pelas ambição e "evolução" humanas irreversivelmente leva embora uma percepção mais doce, pacífica e pastoral do mundo, deixando no lugar desta uma malquerença crescente. A origem desse mal, na visão dos roteiristas (entre os quais o diretor e também o lendário Tonino Guerra, escritor das obras de Antonioni) está na política, no nacionalismo ufanista e na intolerância étnica que assolaram a região. Curiosa e paradoxalmente, o herói vai buscar paz espiritual numa região de conflito armado corrente.
Angelopoulos, com seu cinema contemplativo e de reflexão, define-se bem quanto ao seu modo de filmar. Fazendo uso de uma câmera fluida, por entre travellings, zooms e gruas, ele leva a cabo uma lenta (e necessária, dentro de seus propósitos) narrativa convencional pontuada de planos-sequência engenhosos. Um destaque àquele que introduz em cena o personagem de Keitel, esse Ulisses moderno do filme. Rodado à noite, com passagens variadas de locações e bom número de figurantes, assombra pela perfeição de sua execução e rara beleza. É talvez um dos mais espetaculares que o Cinema testemunhou. Cenas como as duas consecutivas que focalizam refugiados albaneses - ora estáticos (lembrando uma inesquecível cena de O Ano Passado em Marienbad de Resnais), ora em movimento a diferentes tempos -, aquela da jornada da estátua de Lenin (com sua colossal cabeça como a observar a derrocada de seu regime político) e outra que realiza uma variação sobre O Baile de Ettore Scola já carregariam intrinsecamente, cada qual delas, enorme significado dentro dos respectivos contextos apresentados. Mas Angelopoulos não se contenta apenas com isso: reveste essas mesmas passagens com uma poesia visual de tirar o fôlego.
Há tanto apuro imagético, principalmente na primeira metade do filme, que o roteiro parece se tornar secundário. Primeira impressão, pois forma e conteúdo aqui caminham de mãos dadas, infrequente cônjuge. Theo conhece igualmente o poder da sugestão, e exemplo disso é o uso de um conjunto mais-que-perfeito de contextura, imagem e som para realizar tal efeito, o que se dá na trágica cena da neblina em Sarajevo, quando o espectador é arremessado ao drama então vivenciado pelo protagonista, o qual tem de imaginar a ação onde não a pode ver.
Com uma fotografia esplêndida obtida mormente sob céus plúmbeos, trilha sonora gentil, atuações comoventes de Keitel e Maia Morgenstern (esta a representar todas as mulheres parceiras na tristeza do Novo Ulisses) e tantos outros predicados, esta obra de quase três horas de duração se afirma como uma das peças fundamentais do final do século passado, aquele conturbado período abraçado por quem retratou a procura por um olhar perdido, definitivamente perdido: um olhar tragado pelo caos.
Um Olhar a Cada Dia (To Vlemma tou Odyssea)
Direção: Theodoros Angelopoulos
Roteiro: Theodoros Angelopoulos e Tonino Guerra
Com: Harvey Keitel, Maia Morgenstern, Erland Josephson, Yorgos Michalakopoulos
País de produção: Grécia/França/Itália/República Federal da Iugoslávia/Reino Unido/Bósnia-Herzegovina/Albânia/Romênia/Alemanha
Ano de lançamento: 1995
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 176 minutos
*originalmente publicado no site da Accirs.
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