Resenha Crítica do filme "Inverno da Alma"
Daniel Rodrigues*
Há um profundo amor quase impenetrável nos meandros de determinadas obras. Como na peça “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, de Plínio Marcos, no conto “Chacais e Árabes”, de Franz Kafka, ou filmes como “O Rito”, de Ingmar Bergman; obras duras. Tão intrincados de perscrutar que a própria manifestação afetiva, vencida por motivos indignos, parece nem existir. Mas ela está lá, mais viva que se possa sugerir à primeira vista. É o caso de “Inverno da Alma” (Winter's Bone, 2010), da diretora Debra Granik, cujo enredo evoca sentimentos motivadores genuínos, mesmo que encobertos de rancores, medos e inseguranças próprios do ser humano.
Premiado em Sundance e Berlim, o filme conta a história de Ree Dolly (Jennifer Lawrence, indicada ao Oscar de Melhor Atriz), uma jovem de 17 anos cuja imensa responsabilidade de gerenciar com parcos recursos uma casa com dois irmãos pequenos e uma mãe mentalmente doente é ainda mais dificultada quando ela se vê necessitada a encontrar seu desaparecido pai, Jessup Dolly, depois que ele usa a mesma casa como forma de garantir sua liberdade condicional. Diante da possibilidade de perder o teto, Ree desafia os códigos e a lei do silêncio do inóspito e gélido vilarejo onde moram arriscando a vida para salvar sua família. Os receios e as autoproteções dos que, de alguma forma, estiveram envolvidos com seu criminoso pai, então, começam a se manifestar na forma de mentiras, fugas e agressividade.
Ree aborda várias pessoas na tentativa de encontrar Jessup. Mesmo assim, o fato de seu pai ter dívidas com muita gente parece tornar as barreiras para a verdade intransponíveis. Mas só parece. Um dos elementos utilizados pela diretora para narrar a história com sua lente segura e rigorosa são as diversas portas daquelas simples casas, ao mesmo tempo protetoras dos frios do inverno e da alma. A cada abordagem atrás de ajuda, a protagonista lança-se numa busca onde é preciso transpor as “portas” daquele “íntimo coletivo” magoado e culpado – e, por isso, instintivamente hostil.
Na primeira metade do filme, por mais que pudesse adentrar em algum lar, a tentativa é sempre nula, como se a esperança de chegar a seu único objetivo (encontrar o pai vivo ou morto) fosse imediatamente negada. Passagens que se fechavam. No entanto, o elemento simbólico dessa busca mantém-se na persistência da personagem, e é então que as atitudes passam a gerar consequências, e as soluções, de forma amarga e realista, aparecem. Seu próprio tio, Teardrop (o ótimo John Hawkes, concorrente ao Oscar de ator coadjuvante), irmão de Jessup (e tão “durão” quanto o consanguíneo), que de início lhe negara apoio, tentando com brutalidade demovê-la da empreitada, é quem, depois, convencido a ajudar a sobrinha, busca-lhe na casa dos inimigos com a verdadeira intenção de, a partir dali, protegê-la.
Impossível não referenciar ao cinema iraniano, como aos cineastas Abbas Kiarostami ou Mohsen Makhmalbaf, cujas obras são marcadas pelos elementos representativos da busca por alguma coisa que, material ou não, direcionam o olhar do espectador a encontrar junto com os protagonistas aquele algo que existencialmente lhes faz falta. E, de fato, é o que procuram. Os road movies “Vida e Nada Mais” (1992) e “Gosto de Cereja” (1999), de Kiarostami, ou “Um Instante de Inocência” (1996), de Makhmalbaf, vão bastante nesta linha.
A fotografia entre o azulado e o acinzentado de “Inverno da Alma”, ressaltando a seca floresta de altos e opressores pinheiros, imprime uma sensação de solidão e mistério, pontuado por uma câmera quase que invariavelmente estática e uma trilha sonora econômica, usada para marcar momentos-chave da trama. Um pouco como “Fargo”, dos irmãos Coen (1996), inocência e subversão convivem num microuniverso à parte de tudo, escancarando um ser norte-americano interiorano longe dos belos tipos de Nova York ou Los Angeles comercialmente vendáveis ao mundo. Aqui, não: são gentes pobres e feias, enrugadas, de peles e cabelos maltratados, vestidas de jeans surrados e sem nenhum sinal de sensualidade (chega a ser estranho ver um filme americano onde nada é erotizado...).
É neste pequeno mundo que, impulsionada por um desejo convicto, Ree enfrenta com coragem suas manifestas limitações: a solidão da liderança, a angústia diária da vida pobre, os medos interiores, a fragilidade física de menina num ambiente bruto. Isso, motivada pela autoproteção e pelo amor sincero – mesmo sem sorrisos – aos que lhe dependem. Ela transforma, assim, aquela realidade aparentemente congelada pelo frio dos corações. Jessup, segundo o irmão, não tivera essa força interna para conseguir desviar-se da contravenção e viver em paz com os filhos que tanto amava. Essa ternura descomplicada de Ree se estende não só aos irmãos e a mãe, mas à sombria figura do pai, a quem a investigação acaba por abrir espaço a um novo e inesperado motivo, identificando-o tanto na figura do tio (durão, mas, no fundo, um “coração mole”) quanto no significado que a própria busca em si lhe representa: um encontro consigo mesma. Tal pai, tal filha.
Há uma cena em que Ree folheia com os irmãos um álbum de fotografias onde reveem fotos da família. Numa delas, está o pai, jovem e feliz ao sol. Segundo Ree, quando tinha sua idade. Essa identificação parece, aos poucos e inconscientemente, funcionar como libertadora da jovem quanto às pré-concepções de sua origem nefasta, tão alardeadas e imputadas por todos como sendo inatas dos Dolly.
Curiosamente, a forma como a Ree prova a morte do pai para, enfim, poder ficar com a casa, é levando ao delegado as mãos do morto, cortadas por uma motosserra. E por serem justamente as mãos, o aspecto do inatismo reaparece como metáfora, lembrando a dicotomia levantada por um dos clássicos do cinema expressionista alemão, “As Mãos de Orlac – O Calvário de Um Artista”, de Robert Wiene (1924) – mesmo diretor do essencial “O Gabinete do dr. Caligari”. No filme, o pianista Paul Orlac sofre um acidente de trem onde perde as mãos. Na cirurgia de emergência, transplantam-lhe as mãos do assassino Vasseur, que acabara de ser executado. Ao saber disso, o sensível músico entra em um grande conflito interno que o leva à loucura: passa a, igualmente ao “dono” das mãos, matar com elas. As mãos de Orlac assumem o caráter de um símbolo: instrumentos da vontade que comanda o fazer, pelo qual o homem revela sua humanidade ou desumanidade, elas são um signo material do sujeito, tanto como objeto da expressão dos sentimentos quanto demonstração objetiva da personalidade.
Não à toa, é com um pequeno toque no ombro do seu tio que Ree, mesmo temerosa, demonstra-lhe empatia, firmando ali o elo emocional entre os dois. Ao tomar consciência da própria personalidade, as coisas começam a tomar rumos que, de uma forma ou outra, acabam se encaixando. Pela iniciativa de alguém para mudar o cenário, os corações, agora timidamente sorridentes, parecem motivar-se a se aquecer. Vida e nada mais.
Sobre a diretora
A americana Debra Granik, nascida em Cambridge, Massachusetts, tem uma curta e já premiada carreira. Formada em cinema pela Tisch School of the Arts (New York University), fora as já citadas premiações e indicações de “Inverno da Alma” (além da principal indicação ao Oscar, a de Melhor Filme), Debra ganhou, na sua estreia atrás das câmeras o prêmio de Melhor Curta-Metragem para seu “Snake Feed” no Sundance Film Festival de 1998. Ligada ao cinema independente, “Inverno da Alma” é recém seu segundo longa. Seu primeiro, “Down to the Bone”, de 2004, sobre uma mulher presa em um casamento que luta para criar seus filhos e controlar o hábito secreto de se drogar, deu a ela o prêmio de Melhor Diretora de Filme Dramático também em Sundance.
A considerar seus dois longas, percebe-se um olhar bastante humanístico e sensível sobre questões muitas vezes obscuras da sociedade norte-americana, como os vícios, as desarticulações familiares da vida moderna e as pressões psicológicas impostas pela por esta sociedade. Longe da exuberãncia fotográfica e mais próxima das composições plásticas precisas, o estilo de Debra, anteriormente formada em Política, vale-se desta visão mais ampla para direcionar suas lentes a questões socioeconômicas que operam do externo para o interno, motivando, a partir daí, a consequências mais profundas e íntimas dos personagens.
*Jornalista, apoiador do Ciclo.
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