quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Luz, câmera, inovação

Para uma pequena frente de cineastas, os baixíssimos orçamentos servem de mote criativo para filmes mais autorais e intimistas – mas de alta qualidade técnica.

Clarissa Barreto, jornalista*

Na contramão das superproduções das telonas, o paradigma da câmera-na-mão-e-ideia-na-cabeça ganha fôlego. Até há algumas coisas em comum com o Cinema Novo: diretores que acumulam funções, atores que atuam à base do amor à camiseta e todos os outros elementos típicos de filmes realizados com orçamentos baixíssimos. Em uma analogia com as empresas aéreas, pode-se dizer que obras como 3 Efes, de Carlos Gerbase, Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, e A Última Estrada da Praia, de Fabiano Souza, operam em low-cost. A diferença é que, em vez de poltronas apertadas e barrinhas de cereais, eles entregam a lauta refeição de um cinema de qualidade – e é aí que está a novidade. Mesmo com orçamentos de menos de R$ 100 mil, nenhum deles se ressente de som e imagem mambembes. Defeitos técnicos, se houver, podem dar até um certo charme ao filme.

Sem dinheiro, o jeito é se virar. A primeira a sofrer o baque é a equipe. O diretor acaba assumindo o maior número de funções possível. Em casos extremos, como o de Spolidoro em Morro do Céu, assumem o “bloco do eu sozinho” e dirigem desde o filme até o carro que transporta os atores. Tanta autossuficiência, necessária para enxugar os gastos, acaba se refletindo nas obras, o que leva ao questionamento: haverá uma identidade comum a esses filmes?

Ligado à Casa de Cinema e professor do curso que forma cineastas na Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), Carlos Gerbase, ele próprio um entusiasta (e vítima) da pouca verba, acha que esta identidade existe, sim, mas quer provas. Tanto que decidiu se embrenhar em um pós-doutorado na Sorbonne-Nouvelle com uma tese sobre filmes de baixíssimo orçamento brasileiros e franceses. A ideia do ensaio é mostrar o acúmulo de funções dos diretores nesse tipo de produção, mas, de quebra, revelar que o cofrinho vazio desemboca em um cinema mais autoral. Dos cinco brasileiros que são objeto da pesquisa, dois são porto-alegrenses – 3 Efes, do próprio Gerbase, e Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro. O primeiro custou cerca de R$ 50 mil, e o segundo, R$ 90 mil. Para efeito de comparação, um filme “BO” – de baixo orçamento, de acordo com os parâmetros do Ministério da Cultura – se situa na faixa do R$ 1 milhão.

No resumo do estudo, Gerbase ressalta que “neste tipo de filme, a autoria é obtida por um processo concreto, quantitativo, de acúmulo de funções pelo diretor, e não por uma suposta essência autoral que estaria presente nas atividades de direção”. O interessante, para o cineasta, é que esse acúmulo enxuga e concentra as decisões mais importantes em uma só pessoa – o diretor. “Acaba com aquela oposição entre o diretor, que quer fazer uma coisa, e o produtor, que não deixa porque não tem dinheiro. No caso do baixíssimo orçamento, o diretor sabe o que pode oferecer. Torna as decisões mais orgânicas, vai resolvendo os problemas estéticos no set, na prática, e cria soluções que levam em conta o pouco dinheiro que se tem.”
Essa semelhança, estuda Gerbase, pode vir da economia de recursos estéticos que leva a um curioso dilema: o filme é mais intimista porque é mais barato ou é mais barato por que o roteiro é mais intimista? “Com pouco orçamento, ninguém trabalha com grua, travellings complicados ou grande figuração. Tem de ter uma certa coerência entre o que se pretende fazer e os recursos que se tem, senão o filme parece pobre. A ideia é não fazer o que não se pode fazer, senão o pouco dinheiro aparece”, explica. “De modo geral, o fato de mexer pouco na locação faz com que se consiga um realismo muito interessante. Pode ficar feio, mas o feio é interessante, ele é dramático”, comenta. Para Gerbase, parece mesmo haver um certo intimismo nos filmes. “Ou seja, fala-se muito de seres humanos e seus dramas particulares, em ficção e documentário. Se pegar Morro do Céu e os franceses, vê-se que o cotidiano que aparece é muito grande e outros vão nessa balada também.”

Vacas tão magras resultam em equipes mais que enxutas. Em ambos os filmes, os diretores fizeram muito mais que dirigir. Em 3 Efes, Gerbase respondeu por direção, roteiro e produção. Spolidoro foi ainda mais longe: além dos três cargos, assina a fotografia e a edição de som em Morro do Céu. “Era eu e a câmera, que cabia na palma da minha mão”, diz o cineasta e também professor da Faculdade de Cinema da PUCRS. Mas o que poderia ser uma deficiência Spolidoro transformou em diferencial. “Uma coisa que só deu certo por causa do pouco dinheiro é que eu estava sozinho lá. Não tinha uma vara bem em cima da cabeça do ator, ele usava um microfone de lapela o dia inteiro, esquecia que estava com microfone, falava e vivia a vida do personagem”, explica. Com mais dinheiro, duvida que faria um filme melhor – faria algo, no máximo, diferente. “Se eu tivesse mais, uma supercâmera grandona e não uma que cabia na palma da mão, mais luz, mais equipe ali, não ia existir este filme como ele existe. Se eu tivesse dinheiro, talvez caísse em certas tentações que prejudicariam o final”, acredita.

Spolidoro aposta numa linguagem mais intimista e menos narrativa para os filmes mais baratos. Por não ter a necessidade do dinheiro, por ter de achar caminhos para fugir de um gasto normal, os baixíssimos orçamentos acabam sendo menos narrativos, diz ele. E, justamente por serem menos narrativos, acabam ficando mais interessantes. “Acho que tem um excesso de narrativa no cinema”, aponta Spolidoro. Para ele, as limitações financeiras têm um lado bom: acabam livrando as produções de caprichos desnecessários. “Os excessos flertam com o cinema clássico e com quem faz filmes roboticamente, sem experimentar nada. Este cinema não me interessa mais”.

Embora o cinemão tenha uma tendência narrativa, é possível acostumar o espectador a uma nova linguagem, acredita Spolidoro – que, em novembro, fez a curadoria da mostra audiovisual Vivo Arte.Mov, em Porto Alegre. “Foram nove filmes que passaram, curtinhos, de um a seis minutos, com uma proposta diferente da narrativa clássica. Lá pelo terceiro filme, o espectador já não está se perguntando ‘E aí, cadê a história, cadê o final?’, porque ele já se acostumou com aquela proposta. Assim, acaba-se trazendo um outro caminho audiovisual para as pessoas.”

É o que mobiliza, também, o cineasta e produtor colombiano radicado em Porto Alegre Juan Zapata, de Dança da Vida. “Vejo agora que sempre vou pensando meus filmes com baxíssimo orçamento”, brinca. “Sempre escrevo pensando no que é viável. Não crio histórias que tenham 12 helicópteros – só com isso eu faço cinco filmes.” Em processo de produção do longa Simone, também de baixíssimo orçamento, Zapata hesitou em responder a APLAUSO se enxergava uma estética comum aos filmes feitos com pouco dinheiro. No dia seguinte, chega em um e-mail a resposta: “Fiquei pensando sobre sua matéria antes de dormir... E concluí que fazer cinema de baixo orçamento motiva o cineasta a criar uma maior intimidade com a história ou com o filme. Essa intimidade é o que pode potencializar e fazer dela um verdadeiro diferencial como proposta autoral. Depois (de pensar nisso) consegui dormir tranquilo”, brinca.

Futura escola?
Mesmo com os esforços de parte dos cineastas gaúchos convergindo para um cinema mais barato, ainda não é possível dizer que eles formam uma escola. “Ainda está começando, então não dá para falar em uma identificação mútua”, avalia o crítico de cinema e colunista de Aplauso, Marcus Mello. Mas pode ser uma questão de tempo, apenas. Para o especialista, em outras regiões do país esta “escola” já existe. Um dos destaques é Minas Gerais, onde há pelo menos dois diretores despontando na capacidade de filmar mais com menos. “Sérgio Borges, vencedor do festival de Brasília com O Céu sobre os Ombros, e Tiago Mata Machado, de Os Residentes, são expoentes desse tipo de cinema de baixíssimo orçamento que já apresenta uma identidade”, aponta Mello.

Os filmes de baixíssimo orçamento, segundo ele, têm mais invenção e recusam a narrativa – aproximam-se mais da videoarte, com uma estrutura que busca despertar sensações em vez de retratá-las. As imagens, o som e os demais atributos técnicos geralmente são de boa qualidade, graças a equipamentos e tecnologias cada vez mais avançados – e baratos. Dispensam, por exemplo, os filmes de 35 milímetros, cuja cópia custa cerca de R$ 120 mil – mais do que o orçamento inteiro da maior parte das obras do cinepenúria.

“Com R$ 5 mil, é possível comprar uma boa câmera digital”, exemplifica Bruno Polidoro que, com 25 anos, é um dos mais jovens talentos do cinema dos pampas. A geração de Polidoro, a primeira turma formada na Faculdade de Cinema da Unisinos, apostou na tecnologia – e no dinheiro do próprio bolso – para tornar seus filmes realidade, sem depender necessariamente de patrocínio oficial. “Hoje, a gurizada que está na faculdade está cheia de ideias. A geração anterior estava muito travada nos editais, levava cinco anos para fazer os filmes. Hoje, as pessoas não têm mais essa paciência”, diz Polidoro, com a autoridade de quem dá aulas na mesma faculdade que o formou e com uma bagagem já premiada. No último Festival de Cinema de Gramado, ele abocanhou dois prêmios de fotografia na competição de curtas-metragens.

Também na fotografia, junto com o cineasta Cacá Nazário – de Cio da Terra, cujo orçamento foi de R$ 50 mil –, Polidoro tira do papel um documentário sobre o escritor Caio Fernando Abreu também nos moldes low-cost. Para resgatar a passagem de Caio pela Europa, ambos investiram do próprio bolso para filmar na França, Inglaterra, Alemanha e Holanda. “Mas acreditamos no projeto, que ele vá se viabilizar e também fazer uma boa carreira. Senão não teríamos investido. Não é a fundo perdido”, acredita Polidoro.


É possível fazer um bom road movie – com muitas tomadas externas – sob um orçamento reduzido? Fabiano de Souza provou que sim com A Última Estrada da Praia, filme que teve origem em O Louco, episódio da série “Histórias Curtas”, da RBS TV – escrito já com o objetivo de ser o primeiro longa do diretor. Ao custo de R$ 200 mil, financiados com a verba da TV, mais Funproarte e recursos próprios, A Última Estrada da Praia foi bem recebido pela crítica. “Conseguimos um acabamento bom para ele e o que chama a atenção não é o baixo orçamento”, brinca. Para Souza, o segredo foi repartir a verba entre todas as áreas do filme. “Assim, a imagem não ficou melhor que o som e todo mundo foi pago”, explica. As cenas também foram rodadas em sequência, já que o equipamento é caro. “Fizemos na ordem. Havia ‘o dia da grua’, e aí usávamos tudo que era preciso”, lembra. A aposta do diretor, que comandava seu primeiro longa, foi usar estreantes na equipe de 15 pessoas. “O pessoal que saiu da Faculdade de Cinema está realizando seus primeiros trabalhos, com muita vontade de fazer essas indiadas. É o que os filmes de baixíssimo orçamento têm em comum: a vontade realizadora e o tesão de fazer os filmes.”

A Última Estrada da Praia é uma adaptação do romance do escritor gaúcho Dyonélio Machado, O Louco do Cati. O filme conta a história de três amigos que resolvem fazer uma viagem até a praia, levando de carona um desconhecido. Adaptado para os dias de hoje, o roteiro ainda inclui um triângulo amoroso entre os personagens. “O curta virou um filme autoral”, resume.

*Texto publicado na revista Aplauso, nº 103.

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