quarta-feira, 2 de março de 2011

O OLHO QUE TUDO VÊ

A realidade subjetiva em O Escafandro e a Borboleta.
Vicente Moreno*

Artista plástico neo-expressionista, Julian Schnabel surgiu para o cinema em 1996 com Basquiat. De lá para cá, lançou apenas mais dois títulos:  Antes do Anoitecer (Before Night Fall, 2000) e agora O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre ET Le Papillon, 2007). Com tão poucos filmes, saltam aos olhos as recorrências: além de todos serem adaptados de alguma obra literária, todos trazem como tema a liberdade, explorada através da investigação da criação artística. Seus protagonistas são sempre artistas reais que produziram em condições adversas, artistas marginais de alguma forma. Foi assim com o pintor das ruas Jean Michel Basquiat em Basquiat, com o escritor cubano perseguido e exilado Reinaldo Arenas em Antes do Anoitecer, e dessa vez com Jean-Dominique Bauby em O Escafandro e a Borboleta.

Bauby era o editor-chefe da revista francesa de moda ELLE antes de sofrer um acidente cardiovascular e acabar paralisado em uma cama de hospital até a sua morte.Vítima da chamada síndrome do encarceramento (lockedin syndrome), Bauby, apesar de perfeitamente consciente, acaba aprisionado dentro do próprio corpo, tendo como único movimento possível o piscar de um dos olhos. Ainda assim, graças a um sistema empregado por sua ortofonista, ele consegue levar adiante um contrato de livro que tinha com uma editora. Sinalizando letra por letra através de piscadas, Bauby encontra na escrita e na imaginação a saída de seu escafandro. É esse livro-testamento, o único que Bauby irá escrever antes de morrer, que serviu de material para Schnabel fazer certamente o seu melhor filme até agora.

O Escafandro e a Borboleta demonstra uma clara evolução em relação aos seus filmes anteriores. Nele, Schnabel vai muito além dos clichês das histórias de superação, alcançando com rara poesia questões fundamentais sobre os limites entre consciência e realidade, entre arte, representação, vida e morte – questões estas em perfeita sintonia com as escolhas formais pelo uso extensivo e atípico da câmera subjetiva e das recorrentes inserções de imagens de arquivo. Isso demonstra o amadurecimento estético do diretor e afasta definitivamente qualquer possibilidade de considerá-lo um estrangeiro das artes plásticas infiltrado no meio cinematográfico.

A claustrofobia do olhar

Sendo o livro de Bauby autobiográfico, é natural que o filme privilegia a sua perspectiva. No entanto, a busca pelo ponto de vista do protagonista não fica restrita ao emprego da voz-over e do monólogo interior; ela é radicalizada oticamente, mercando-se enquanto recurso de linguagem.  Como que encarcerados no escafandro de Bauby, durante os primeiros 38 minutos só acompanhamos o que acontece no hospital através de uma câmera subjetiva instável, que reproduz as condições debilitadas do personagem.

Se um dos grandes fascínios e trunfos do cinema é justamente a possibilidade de contrapor múltiplos pontos de vista, o que acontece quando essa possibilidade é propositada e radicalmente negada? A primeira e mais rápida suposição seria o surgimento do incômodo.  No entanto, tal incômodo não poderia estar mais justificado, pois, de forma rápida e intensa, fica expressa a aflição claustrofóbica da imobilidade e da impotência de Bauby. Assim, mesmo com um protagonista de ações restritas e um olhar igualmente restrito, o processo de identificação e envolvimento como universo ficcional não fica de forma alguma ameaçado, mas, ao contrário, ganha força.

Alguns poderiam lembrar que a utilização radical da câmera subjetiva não é novidade, já que, em 1947, mesmo dentro de Hollywood, o ator-diretor Robert Montgomery já havia feito um longa-metragem interior (A Dama do Lago, Lady in the Lake) restringindo-se ao mesmo procedimento – feito este que seria para sempre citado por críticos e estudiosos como ingênuo e mal-sucedido. Fica a pergunta: o que diferencia a câmera de Montgomery da câmera de Schnabel, que faz da primeira um exemplo de experiência fracassada e da segunda uma grande demonstração de criatividade? Como diferencial, encontramos nas subjetivas de Escafandro ...  alguns elementos técnicos bastante originais, que, combinando fotografia e montagem, enriquecem em muito esse recurso já comum.

Para levar a câmera subjetiva a outro nível, o fotógrafo Janus Kaminski (parceiro de Spielberg em mais de 10 filmes) trabalha não só com a reprodução dos movimentos do personagem, mas também, e principalmente, com as distorções do olhar de alguém que acaba de despertar de um coma. Através de foques e desfoques, alterações na exposição e aparatos em frente à lente, a câmera, subjetiva reproduz as secreções do olho de Bauby – chora, pisca e se perde com ele. Como Bauby não podia mexer a cabeça, muitas vezes temos os seus interlocutores decepados, mal-enquadrados, o que valoriza a força do espaço fora de quadro e liberta os personagens em cena. Em todos os sentidos, as subjetivas de Escafandro ... servem como perfeito contraponto às de A Dama do Lago, pois neste último se percebe que a extrema preocupação em manter os quadros compostos e os movimentos estáveis acaba engessando a mise-em-scèn’, que é toda submissa ao posicionamento da câmera e, portanto, pobre e previsível.

Agora, mais decisiva do que a plasticidade orgânica dessa câmera subjetiva é a forma como a montadora Juliette Welfling a articulou. Ao imaginar a reprodução fiel do olhar de um personagem pela câmera, é fácil incorrer no mesmo erre de Montgomery e acreditar que todas as cenas devam ser – ou ao menos parecer – longos planos-sequência, pois o olhar humano e aparentemente contínuo. No entanto, como gosta de apontar Giba Assis Brasil, isso é um equívoco: ao movemos o nosso olhar de objeto em objeto não estamos fazendo panorâmicas, mas sim cortes, pois, apesar de enxergar os intervalos entre os pontos de atenção, não os consideramos. Talvez com isso em mente, Schnabel e Juliette optaram pela descontinuidade da câmera subjetiva, o que serviu não só para libertar e dinamizar a narrativa, mas também para reproduzir ainda mais as percepção do personagem.  Para tanto, a montadora trabalha com uma articulação essencialmente elíptica, tanto no interior das cenas como entre elas, abusando de jump cuts, de pontas pretas e da inserção de poucos frames desfocados entre plenos, reproduzindo pescadas humanas.

Todos esses detalhes técnicos apontam para uma mesma direção artística: em vez de tentar negar ou minimizar as evidentes limitações da câmera subjetiva, o caminho foi abraçá-las e explorá-las ao máximo enquanto tradução estética da subjetividade do personagem. Talvez a cena que leve mais longe essa fusão entre espectador e personagem, entre forma e conteúdo, é aquele em que, por falta de irrigação, um dos olhos de Bauby precisa ser fechado, costurado. A agonia de ver de dentro as pálpebras serem unidas por agulha e linha, ponto a ponto, fazem dessa imagem uma metáfora inesquecível da limitação do olhar. E é justamente nesse ponto, logo após a costura total das pálpebras até o preto, a primeira vez em que saímos da câmera subjetiva no hospital e vemos Bauby de fora, mas apenas em breve plano detalhe do seu olho suturado. Já é um indício de que o filme aponta para a busca, por parte do personagem e da câmera, de um olhar além desse olhar negado, de um olhar além do físico e concreto: o olhar da imaginação e da memória.

Essa libertação do olhar e suas escapadas da câmera subjetiva vão sendo construídas progressivamente em paralelo à evolução de Bauby. Ainda assim, nas poucas chances que temos de ver Bauby de um ponto de vista externo, seu rosto nós é repetidamente negado. Em uma cena ainda no início do filme, quando Bauby é levado para fora do quarto pela primeira vez, vemos um reflexo borrado do seu rosto ao passar por algumas vitrines no corredor do hospital. Nessa ocasião, o próprio Bauby questiona-se sobre seu reflexo monstruoso, ainda sem aceitar que sua condição de subsistência pode ser chamada de vida. Como em um conto moral, o seu texto só poderá tomar uma forma nítida quando ele vencer seu desejo de morrer e decidir reencontrar dentro de si algum sentido para ir adiante.

A culminância dessas duas linhas que correm em paralelo, a da aceitação de Bauby (conteúdo) e a da liberação da câmera subjetiva (forma), ocorre quando Bauby percebe que existe uma maneira de libertar-se: simplesmente imaginar-se livre. Em uma seqüência de justaposição de imagens de arquivo, que inicia com o desabrochar de uma borboleta, Bauby declara sua independência, imaginando mundos distantes, sonhos não-vividos, mas principalmente, imaginando a si próprio – primeiro de forma idealizada,  depois representado na figura de Marlon Brando, mas logo de forma mais honesta, através de uma série de retratos  de Mathieu Amalric, o ator que interpreta Bauby.

O primeiro plano após essa seqüência começa com o rosto de Bauby em sua cadeira, perfeitamente nítido, subindo em seguida para o rosto de sua ortofonista, que fala ao telefone com uma editora pra avisar que ele decidiu escrever um livro. Como uma etapa que se fecha,  o rosto paralisado de Bauby finalmente toma forma, marcando a sua mudança de atitude, o fiem do encarceramento da câmera subjetiva e o início do novo rumo que toma o filme.

O poder da criação e a subjetividade da realidade

Para além do artista, estendendo-se a qualquer indivíduo, o filme é uma apologia da liberdade da mente e do poder da criação. A borboleta do título é uma metáfora clara dessa liberdade. Além da relação óbvia com as ‘asas da imaginação’, é importante ressaltar que a borboleta remete também ao olho que pisca, o único contato de Bauby com o mundo exterior. O olho, o olhar, que antes era prisioneiro, agora pode ser visto como símbolo de liberdade graças à força da imaginação e ao poder transformador da consciência. É a exarcebação do poder do sujeito sobre os objetos.

No mergulho subjetivo que o filme propõe, confunde-se memória e imaginação, o que supostamente seria real e aquilo que não passa de fabricação da mente de Bauby. Há momentos em que a distinção é mais clara, como, por exemplo, no encontro com o pai e no acidente cardiovascular (memória) ou no jantar no ‘Le Duc’ e no beijo com a estátua viva (imaginação). Ainda assim, o que nos leva a tomar uma situação como mais real que a outra é a lógica realista ou não dos acontecimentos, sua verossimilhança; no entanto, se formos adiante na investigação, veremos que, em se tratando de subnarrativas, trazidas pela elaboração de um personagem, não há real distinção possível entre memória e imaginação, pois ambas são igualmente questionáveis.

Nas seqüências constituídas de imagens de arquivo, que seriam entendidas como imaginação, temos, por exemplo, elementos da memória, como os retratos das diferentes fases de Bauby (já descritos acima). Da mesma forma, mesmo dentro das cenas em que somos transportados clara e audiovisualmente para um momento da vida de Bauby no passado, encontramos pequenos lapsos de irrealidade – como na seqüência de Lourdes, em que Bauby sai à noite pelas ruas repletas de pessoas e, subitamente, se vê caminhando sozinho pelas mesmas ruas agora completamente vazias.

Essa mistura proposital entre realidade e fantasia lembra a citação retira do livro de Bauby que uso para epígrafe deste texto, citação esta que, apesar de não colocada literalmente no filme, está muito bem expressa na sua articulação. Acredito que a ideia da não-diferenciação entre sonho e realidade, evocada nesse caso por uma experiência extrema como a de Bauby, remete a nossa própria relação com o real. O contato com o mundo físico, com a suposta ‘coisa em si’, só ganha o status de ‘real’ graças à sua complexidade de estímulos. Podemos  ver, ouvir, tocar, cheirar e até provar um objeto. Os nossos sentidos nos abastecem com suficiente informação para que não nos questionemos muito sobre como esse mesmo objeto depende da nossa percepção.  Ao ter seus sentidos limitados, Bauby, como o espectador cinematográfico, fica restrito à visão e à audição, não tendo como se beliscar ou tocar em um objeto quando surge a dúvida se está vivendo um sonho ou a ‘realidade’.

Imóvel e impotente, Bauby é o indivíduo-observador quintessencial: um sujeito solitário diante de um mundo de objetos, onde tudo e todos (inclusive o próprio corpo) estão irremediavelmente submissos à sua percepção. Essa ideia da imaterialidade do mundo, a negação do concreto, pode ser assustadora em um primeiro momento, como o é para Bauby. No entanto, eventualmente ele percebe aquilo que talvez todos devêssemos perceber: se a realidade está submissa à nossa percepção, por que não usar da imaginação e da criatividade para tentar manipulá-la a nosso favor? Essa visão mais otimista em relação à subjetividade da realidade é talvez a grande premissa do filme, que acaba trazendo como exemplo de superação justamente a liberdade do mundo material – uma ode à imaginação e à criação.

Em um determinado momento da primeira parte do filme, antes da virada otimista, vemos uma seqüência de imagens de paredões de pedra sendo implodidos enquanto ouvimos Bauby lamentando sues fracassos e suas oportunidades perdidas. No final, quando Bauby morre pouco depois da publicação de seu livro, o otimismo e sua premissa ficam claramente sustentados na poética seqüência de créditos finais. Ao som de Ramshakle Day Parede, vemos os mesmos paredões agora em reverse, reconstruindo-se, recriando-se, escapando do pó e do caos. Uma metáfora óbvia, mas contundente. Bauby se vai; fica seu livro. Isso nos faz pensar que talvez a arte e a criação, a subjetividade expressa em linguagem, sejam a melhor forma, para não dizer a única, de escapar da morte.

*Cineasta, professor da Especialização em Cinema Unisinos. Ministrante do Ciclo Olhares Sobre o Cinema. 
Texto publicado na revista Teorema Crítica de Cinema, nº 13. Dezembro de 2008.
 
 
Julian Schnabel Filmes:
 * Basquiat (1996)
 * Before Night Falls (2000)
 * The Diving Bell and the Butterfly (2007)
 * Lou Reed's Berlin (2007)
 * Miral (2010)

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